6.2.06

Gostei tanto que reproduzo na íntegra


O riso ou o esquecimento



A caricatura publicada ontem pelo Le Monde apresenta de forma nítida o que está em causa na polémica dos cartoons. Plantu figurou uma mão que escreve repetidas vezes «je ne dois pas dessiner Mahomet», mas que, através das frases, acaba precisamente por desenhar o interdito. No topo do lápis utilizado, institui­‑se a atenta vigilância muçulmana. Não se pode dizer que este diário seja conhecido por algum tipo de deriva populista, nem a argumentação de que é francês serve para encostá­‑lo a qualquer espécie de jacobinismo primário. A questão é outra, para lá da eventual má opção editorial do jornal Jyllands­‑Posten ou do modo desastrado como o governo dinamarquês lidou com as primeiras reacções de protesto à publicação das doze caricaturas, a questão que Plantu tão bem coloca é a da subtil difusão da autocensura, dissimulada na lógica do bom senso e do respeito pelas diferenças entre povos. Um princípio inalienável do que, com maior ou menor propriedade, nos habituámos a designar por civilização europeia é o humor. Foi também porque ousaram activar o riso que alguns dos seus mais nobres representantes foram perseguidos, tendo encontrado mesmo nos compatriotas os piores algozes. Bastaria citar o caso de Rabelais, um dos fundadores do romance moderno, para se compreender do que estou a falar. As situações recentes de artistas perseguidos por blasfémia são deveras conhecidas. Ora, o que distingue a situação presente da vivida por Rushdie após a publicação de The Satanic Verses, por exemplo? É preciso lembrar que aqui não pode estar em causa um critério de avaliação estética da obra, mas apenas o direito vincadamente europeu a tudo questionar. Nesse caso, a resposta só pode ser que nada distingue uma situação da outra, tal como as duas se podem equiparar ao assassinato, em 2004, do realizador holandês Theo van Gogh, autor do filme Submission, que aborda a violência exercida sobre as mulheres em sociedades islâmicas. Entre nós, pode recordar­‑se o grotesco episódio protagonizado pelo presidente de uma câmara municipal, que tentou impedir a exibição de Je Vous Salue Marie, de Godard. Podem os europeus assistir sentados às tentativas de condicionar a liberdade de pensamento e de reflexão crítica sobre todos os temas, permitindo, assim, que seja questionado um pilar essencial da concepção de mundo que nos demorou séculos a construir e que teve muitas fogueiras de permeio? Pedir desculpa pelas caricaturas é, em qualquer circunstância, esquecer ou renegar a ideia de sociedade aberta que fomos fundando ao longo de tanto tempo. Como poderíamos, depois, voltar a ler Giordano Bruno ou Cervantes sem um terrível peso na consciência?
posted by João Paulo Sousa at 11:04 AM

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